quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Amazônia dos brabos e dos caboclos

Amazônia dos brabos e dos caboclos
João Pacheco de Oliveira Filho (1979) se apropriou das discussões acerca do tema fronteira e estabeleceu um estudo acerca do assunto. Ele buscou estabelecer caracterizar a fronteira, formulando, para isso oito teses.
Em sua primeira tese afirmava:
Em primeiro lugar, fronteira não é um objeto empírico real, uma região, ou ainda, uma fase na vida de uma região, mas sim uma forma de propor uma investigação. A listagem habitual das áreas de fronteira não significa, portanto, uma enumeração de referentes concretos subsumidos no conceito de fronteira, mas tão-somente a indicação de objetos empíricos aos quais a aplicação de uma análise em termos de fronteira pode ser altamente rentável do pondo de vista da aplicação do conhecimento. (Oliveira Filho, 1979, p.111)
Nessa sua primeira definição, podemos observar que o autor define a fronteira como elemento conceitual, não empírico. Enquanto conceito é construção, logo, um feito, não um dado. Ela é resultado, e não proposição. Todavia, é da forma empírica que vem sendo tratada historicamente nas políticas do Estado brasileiro.
O enraizamento de um pensamento que identifica um lugar, que possa ser encarado como um marco divisório, não é recente no Brasil. Antes mesmo da década de 1950, Oliveira Vianna buscava compreender e propor soluções para aquilo que ele chamava de O problema da unidade nacional. Vianna compreendia que um país da dimensão do nosso, para compor, efetivamente, uma unidade territorial e, em consequência, uma identidade nacional precisava superar os empecilhos produzidos pela distância, geradores das diferenças. Para ele somente um efetivo sistema de transportes seria capaz de integrar os arquipélagos que formavam o Brasil.
Durante os anos 1950, essa discussão esteve sob influência do pensamento cepalino. A tentativa de equacionar os problemas nacionais colocava na ordem do dia a questão regional e as fronteiras internas. Enxergava-se um país com rea- lidades distintas: um Brasil moderno e outro arcaico. Essa construção dualista reproduzia-se enquanto elemento explicador para as ilhas brasileiras, ganhando peso a ideia dos Dois Brasis. As discussões não se esgotavam por aí, pois, se no plano internacional, a deterioração das relações de troca eram encaradas como o elemento que estava na base do colonialismo, a tendência seria reproduzir numa escala interna essa mesma “disfunção”. De acordo com Celso Furtado (1979), a dualidade econômica e o rompimento da economia de arquipélagos tenderiam a reproduzir essa disparidade. Caberia, portanto, ao Estado brasileiro evitar que reproduzíssemos internamente o mesmo mal que afligia as relações internacionais de troca. O Estado deveria assumir um papel redistributivista para resolver esse problema.
Durante o período militar a ação do Estado sobre a região tinha como elemento discursivo central a política de integração, desenvolvimento e colonização. O que podemos notar ao longo desse período é a preponderância da ideia de fronteira estabelecida por Oliveira Vianna. A ideia de outro Brasil e de uma unidade nacional enquanto equacionadora dos problemas brasileiros foi a tônica das ações do Estado. Ou seja, o Estado definiu, com base em elementos empíricos, que a Amazônia era uma fronteira aberta para compor a unidade nacional e palco de políticas de integração. Devemos ressaltar, como faz Oliveira Filho, que a fronteira amazônica não existe a priori. Ela é resultado de uma construção histórica, que tinha na base a ideia de fronteira e no discurso colonizador a necessidade de se construir a unidade e a homogeneização. A primeira tese de Pacheco Filho, em certa medida, a necessidade de repensar conceitualmente a fronteira, caso contrário correríamos o risco de reproduzir as práticas históricas do Estado brasileiro.
Em sua segunda tese, o autor afirmava:
Segundo, a análise em termos de fronteira não inclui uma simples contextualização de uma área dentro de uma unidade (econômica ou política) de nível superior. Na verdade o modelo teórico da fronteira supõe uma totalidade composta por partes heterogêneas e com diferentes ritmos de funcionamento. A fronteira é então o estabelecimento de um mecanismo que correlacione de forma regular e complementar diferentes partes de uma totalidade (que tanto pode ser intranacional quanto associar partes pertencentes a diferentes países). O vínculo anteriormente referido entre a Amazônia e o Centro-Norte constitui um bom exemplo dessa complementariedade. (Oliveira Filho, 1979, p. 111)
Para ele, as bases para podermos pensar a fronteira são a totalidade e a heterogeneidade. Somente a possibilidade de encarar uma região ou uma área enquanto parte de um todo é que possibilita construir a ideia de fronteira, baseando-se na diferença. A pergunta que não está presente é “quem é fronteira para quem?”. Se há heterogeneidades que fazem parte de uma mesma totalidade, somente no campo da disputa é que se poderá determinar qual área é a fronteira.
Francisco de Oliveira (1977) afirmava que não há como entender a região isolando-a na sua peculiaridade. Não há como percebê-la enquanto arquipélago. Se, como afirmava Milton Santos, “produzir é produzir espaço”, a produção de uma região ou de uma fronteira não pode ser entendida sem a compreensão da organização socioeconômica da sociedade e das forças que estão em disputa. Corroborando a afirmativa de Francisco de Oliveira, nosso autor chama-nos atenção para as diversas relações de força existentes e atuantes na totalidade definida na tese anterior.
Na sua terceira tese, ele nos afirma:
Terceiro, as partes que compõem essa totalidade não podem ser concebidas enquanto modelos universais e genéricos, que enfoquem a realidade por um prisma à exclusão de outros (o econômico, p. ex., à exclusão do político e do ideológico). Assim é inadequado pensar tais unidades em termos de modos de produção ou de sistemas econômicos, políticos, etc. A análise dos modos de produção encontradas em escala local precisa dar conta da particular articulação existente entre eles e paralelamente inclui realidades políticas e ideológicas sem as quais não poderia ocorrer a reprodução econômica e social daquela sociedade (Oliveira Filho, 1979, p. 111)
Essa terceira tese indica que para compreender o fenômeno da fronteira não devemos isolar a compreensão da totalidade apenas por um viés. Ao incorporá-la na complexidade existente nas formações sociais locais, pertencentes à totalidade, o autor acentuou o fato de que dinâmicas heterogêneas devem ser compreendidas na sua articulação com o todo.
Foi o isolamento de determinadas classificações genéricas a base para caracterizar a Amazônia e atuar sobre a fronteira. Excluíam-se, dessa forma, outras possibilidades para se compreender a região. Os planos de desenvolvimento econômico para a integração nacional produzidos a partir do Centro-Sul do país, ou como nos afirmou Ariovaldo Umbelino, a partir de interesses internacionais, trataram a questão da fronteira unicamente a partir do viés econômico, à exclusão de outros. O resultado disso foi percebido durante os anos 1980, quando a questão ambiental entrava em cena. Todavia, a atualidade dessa tese reside nas leituras, sobretudo aquelas baseadas nas preocupações ambientais, que hoje produzem propostas de intervenção na região. O mesmo defeito de origem se perpetua, ou seja, a análise tem suas cores baseadas em uma perspectiva ecológica, não inserindo esse viés no todo. Não a incorpora na complexidade do cenário.
As perspectivas de intervenção, tanto as que pensaram o desenvolvimento ou as mais recentes, que interpõem o viés ecológico, basearam-se numa espécie de “vocação” natural ou empírica para fundamentar a atuação sobre a Amazônia. Num primeiro momento eram as terras livres, férteis, lugar desabitado e de natureza pujante, devendo ser integrado. Num segundo momento é o locus da biodiversidade, a maior reserva de água potável do planeta etc. Esse olhar que naturaliza a região é também questionado na quarta tese do autor.
Quarto, é preciso desautorizar a crença de que as partes que compõe essa totalidade estejam dotadas naturalmente de características complementares: a abundância de terras livres e a superpopulação não constituem fatos concretos e inexoravelmente referidos a uma região, mas são traços que podem ser gerados ou alterados a partir de uma intervenção sobre outros elementos dessas realidades. (Oliveira Filho, 1979, p. 111)
Na sua quarta tese, exposta acima, Oliveira Filho nos permite relacioná-la à ideia de produção histórica dos elementos empíricos do conceito e de sua posterior naturalização. A caracterização e a classificação de uma dada região é uma representação construída a partir de um lugar social, logo, de uma dada visão-intervenção no mundo. É resultante de um poder simbólico, associado a uma violência simbólica observada na produção da demarcação.
Ainda em sua quarta tese, afirma:
Essa complementaridade natural entre regiões está suposta na definição de colonização como “ocupação de terras novas”, sendo um componente ideológico fundamental o mito da fronteira aberta. Deixando de lado a sua eficácia ideológica, o desenvolvimento de tais colônias de povoamento coloca para os economistas uma questão mais básica: a de como importar as relações de produção necessárias ao funcionamento do capitalismo na colônia. (Oliveira Filho, 1979, p. 111)
Ao tratar da fronteia como terras novas ou terras livres, estamos diante de uma construção que o autor chama de ideológica. Podemos, da mesma maneira, perceber que enquanto área a ser preservada, a Amazônia é resultante de um processo idêntico.
Nas teses finais sobre fronteira, que falam de fronteiras capitalistas, o conceito ganhou um aporte temporal historicamente situado.
Na quinta tese, o autor argumentou que era necessário que uma das partes da totalidade tivesse mão de obra excessiva, ante os recursos de subsistência gerados pelas mais diferentes motivações. Segundo ele, é a extinção do pequeno produtor que é capaz de explicar movimentos de colonização e não simples políticas do Estado para dirigir o processo migratório. Ao relacionarmos essa quinta tese com a argumentação anterior, perceberemos que as “diferentes motivações” têm origem no campo econômico e/ou político. Portanto, extinguir o pequeno produtor e lançá-lo como mão de obra não autônoma é um processo inerente do capitalismo (inclusão forçada). Conjuntamente a isso, verificamos na migração dessa mão de obra (seja dirigida ou voluntária), para áreas denominadas como fronteiras, uma nova dinâmica desse modelo dominante, a exclusão (Fontes, 1997).
Na sexta tese, o autor argumentou que na fronteira deveriam ser criados mecanismos de controle sobre a mão de obra, ao contrário da ideia de igualitarismo existente nessas regiões, o que nos leva a crer que, mais do que a denominação da fronteira, surgiam, concomitantemente, outras duas características: 1) a área a ser incorporada deveria reproduzir as mesmas relações de produção da área dominante; 2) a fronteira, ao ser estabelecida enquanto tal, traz no seu código genético sua identidade, forjada a partir da visão de mundo de seu criador.
A sétima tese, decorrente da sexta, supõe uma reorganização do mundo social da fronteira sob novas bases, geradas na representação do modelo dominante e voltadas para ele.
A oitava tese, amarrando as partes, determinou que não bastaria a reorganização, mas seria preciso, também, construir os agentes e as atividades que as ligariam com a totalidade.
A temporalidade existente nas últimas teses insere a fronteira na dinâmica capitalista e a ação dessa dinâmica sobre a fronteira, o que não deve ser deixado de lado. Todavia, as quatro teses nos servem para pensar a ação sobre a fronteira, isto é, uma área caracterizada como fronteira.
Da mesma forma que Oliveira Filho, o grupo de Bertha Becker se destacou nessa temática, produzindo teses explicativas para a ação do Estado na fronteira amazônica.
          Antônio Cláudio Rabello; Professor do Departamento de História da Universidade Federal de    Rondônia; doutor em Desenvolvimento Socioambiental pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, da UFPA. @ – antonio.rabello@pq.cnpq.br

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