Amazônia dos
brabos e dos caboclos
João Pacheco de
Oliveira Filho (1979) se apropriou das discussões acerca do tema
fronteira e estabeleceu um estudo acerca do assunto. Ele
buscou estabelecer caracterizar a fronteira, formulando, para isso
oito teses.
Em sua
primeira tese afirmava:
Em
primeiro lugar, fronteira não é um objeto empírico real, uma
região, ou ainda, uma fase na vida de uma região, mas sim uma forma
de propor uma investigação. A listagem habitual das áreas de
fronteira não significa, portanto, uma enumeração de referentes
concretos subsumidos no conceito de fronteira, mas tão-somente a
indicação de objetos empíricos aos quais a aplicação de uma
análise em termos de fronteira pode ser altamente rentável do pondo
de vista da aplicação do conhecimento. (Oliveira Filho, 1979,
p.111)
Nessa sua
primeira definição, podemos observar que o autor define a fronteira
como elemento conceitual, não empírico. Enquanto conceito é
construção, logo, um feito, não um dado. Ela é resultado,
e não proposição. Todavia, é da forma empírica que vem sendo
tratada historicamente nas políticas do Estado brasileiro.
O enraizamento
de um pensamento que identifica um lugar, que possa ser
encarado como um marco divisório, não é recente no Brasil. Antes
mesmo da década de 1950, Oliveira Vianna buscava compreender e
propor soluções para aquilo que ele chamava de O problema da
unidade nacional. Vianna compreendia que um país da dimensão do
nosso, para compor, efetivamente, uma unidade territorial e, em
consequência, uma identidade nacional precisava superar os
empecilhos produzidos pela distância, geradores das diferenças.
Para ele somente um efetivo sistema de transportes seria capaz de
integrar os arquipélagos que formavam o Brasil.
Durante os anos
1950, essa discussão esteve sob influência do pensamento cepalino.
A tentativa de equacionar os problemas nacionais colocava na ordem do
dia a questão regional e as fronteiras internas. Enxergava-se um
país com rea- lidades distintas: um Brasil moderno e outro arcaico.
Essa construção dualista reproduzia-se enquanto elemento explicador
para as ilhas brasileiras, ganhando peso a ideia dos Dois
Brasis. As discussões não se esgotavam por aí, pois, se no
plano internacional, a deterioração das relações de troca eram
encaradas como o elemento que estava na base do colonialismo, a
tendência seria reproduzir numa escala interna essa mesma
“disfunção”. De acordo com Celso Furtado (1979), a dualidade
econômica e o rompimento da economia de arquipélagos tenderiam a
reproduzir essa disparidade. Caberia, portanto, ao Estado brasileiro
evitar que reproduzíssemos internamente o mesmo mal que afligia as
relações internacionais de troca. O Estado deveria assumir um papel
redistributivista para resolver esse problema.
Durante o
período militar a ação do Estado sobre a região tinha como
elemento discursivo central a política de integração,
desenvolvimento e colonização. O que podemos notar ao longo desse
período é a preponderância da ideia de fronteira estabelecida por
Oliveira Vianna. A ideia de outro Brasil e de uma unidade nacional
enquanto equacionadora dos problemas brasileiros foi a tônica das
ações do Estado. Ou seja, o Estado definiu, com base em elementos
empíricos, que a Amazônia era uma fronteira aberta para compor a
unidade nacional e palco de políticas de integração. Devemos
ressaltar, como faz Oliveira Filho, que a fronteira amazônica não
existe a priori. Ela é resultado de uma construção
histórica, que tinha na base a ideia de fronteira e no discurso
colonizador a necessidade de se construir a unidade e a
homogeneização. A primeira tese de Pacheco Filho, em certa medida,
a necessidade de repensar conceitualmente a fronteira, caso contrário
correríamos o risco de reproduzir as práticas históricas do Estado
brasileiro.
Em sua
segunda tese, o autor afirmava:
Segundo,
a análise em termos de fronteira não inclui uma simples
contextualização de uma área dentro de uma unidade (econômica ou
política) de nível superior. Na verdade o modelo teórico da
fronteira supõe uma totalidade composta por partes heterogêneas e
com diferentes ritmos de funcionamento. A fronteira é então o
estabelecimento de um mecanismo que correlacione de forma regular e
complementar diferentes partes de uma totalidade (que tanto pode ser
intranacional quanto associar partes pertencentes a diferentes
países). O vínculo anteriormente referido entre a Amazônia e o
Centro-Norte constitui um bom exemplo dessa complementariedade.
(Oliveira Filho, 1979, p. 111)
Para ele, as
bases para podermos pensar a fronteira são a totalidade e a
heterogeneidade. Somente a possibilidade de encarar uma região
ou uma área enquanto parte de um todo é que possibilita construir a
ideia de fronteira, baseando-se na diferença. A pergunta que não
está presente é “quem é fronteira para quem?”. Se há
heterogeneidades que fazem parte de uma mesma totalidade, somente no
campo da disputa é que se poderá determinar qual área é a
fronteira.
Francisco de
Oliveira (1977) afirmava que não há como entender a região
isolando-a na sua peculiaridade. Não há como percebê-la enquanto
arquipélago. Se, como afirmava Milton Santos, “produzir é
produzir espaço”, a produção de uma região ou de uma
fronteira não pode ser entendida sem a compreensão da
organização socioeconômica da sociedade e das forças que estão
em disputa. Corroborando a afirmativa de Francisco de Oliveira, nosso
autor chama-nos atenção para as diversas relações de força
existentes e atuantes na totalidade definida na tese anterior.
Na sua
terceira tese, ele nos afirma:
Terceiro,
as partes que compõem essa totalidade não podem ser concebidas
enquanto modelos universais e genéricos, que enfoquem a realidade
por um prisma à exclusão de outros (o econômico, p. ex., à
exclusão do político e do ideológico). Assim é inadequado pensar
tais unidades em termos de modos de produção ou de sistemas
econômicos, políticos, etc. A análise dos modos de produção
encontradas em escala local precisa dar conta da particular
articulação existente entre eles e paralelamente inclui realidades
políticas e ideológicas sem as quais não poderia ocorrer a
reprodução econômica e social daquela sociedade (Oliveira Filho,
1979, p. 111)
Essa terceira
tese indica que para compreender o fenômeno da fronteira não
devemos isolar a compreensão da totalidade apenas por um viés. Ao
incorporá-la na complexidade existente nas formações sociais
locais, pertencentes à totalidade, o autor acentuou o fato de que
dinâmicas heterogêneas devem ser compreendidas na sua articulação
com o todo.
Foi o isolamento
de determinadas classificações genéricas a base para caracterizar
a Amazônia e atuar sobre a fronteira. Excluíam-se, dessa forma,
outras possibilidades para se compreender a região. Os planos de
desenvolvimento econômico para a integração nacional produzidos a
partir do Centro-Sul do país, ou como nos afirmou Ariovaldo
Umbelino, a partir de interesses internacionais, trataram a questão
da fronteira unicamente a partir do viés econômico, à exclusão de
outros. O resultado disso foi percebido durante os anos 1980, quando
a questão ambiental entrava em cena. Todavia, a atualidade dessa
tese reside nas leituras, sobretudo aquelas baseadas nas preocupações
ambientais, que hoje produzem propostas de intervenção na região.
O mesmo defeito de origem se perpetua, ou seja, a análise tem suas
cores baseadas em uma perspectiva ecológica, não inserindo esse
viés no todo. Não a incorpora na complexidade do cenário.
As perspectivas
de intervenção, tanto as que pensaram o desenvolvimento ou as mais
recentes, que interpõem o viés ecológico, basearam-se numa espécie
de “vocação” natural ou empírica para fundamentar a atuação
sobre a Amazônia. Num primeiro momento eram as terras livres,
férteis, lugar desabitado e de natureza pujante, devendo ser
integrado. Num segundo momento é o locus da biodiversidade, a
maior reserva de água potável do planeta etc. Esse olhar que
naturaliza a região é também questionado na quarta tese do autor.
Quarto,
é preciso desautorizar a crença de que as partes que compõe essa
totalidade estejam dotadas naturalmente de características
complementares: a abundância de terras livres e a superpopulação
não constituem fatos concretos e inexoravelmente referidos a uma
região, mas são traços que podem ser gerados ou alterados a partir
de uma intervenção sobre outros elementos dessas realidades.
(Oliveira Filho, 1979, p. 111)
Na sua quarta
tese, exposta acima, Oliveira Filho nos permite relacioná-la à
ideia de produção histórica dos elementos empíricos do conceito e
de sua posterior naturalização. A caracterização e a
classificação de uma dada região é uma representação construída
a partir de um lugar social, logo, de uma dada visão-intervenção
no mundo. É resultante de um poder simbólico, associado a uma
violência simbólica observada na produção da demarcação.
Ainda
em sua quarta tese, afirma:
Essa
complementaridade natural entre regiões está suposta na definição
de colonização como “ocupação de terras novas”, sendo um
componente ideológico fundamental o mito da fronteira aberta.
Deixando de lado a sua eficácia ideológica, o desenvolvimento de
tais colônias de povoamento coloca para os economistas uma questão
mais básica: a de como importar as relações de produção
necessárias ao funcionamento do capitalismo na colônia. (Oliveira
Filho, 1979, p. 111)
Ao tratar da
fronteia como terras novas ou terras livres, estamos diante de uma
construção que o autor chama de ideológica. Podemos, da mesma
maneira, perceber que enquanto área a ser preservada, a Amazônia é
resultante de um processo idêntico.
Nas teses finais
sobre fronteira, que falam de fronteiras capitalistas, o conceito
ganhou um aporte temporal historicamente situado.
Na quinta tese,
o autor argumentou que era necessário que uma das partes da
totalidade tivesse mão de obra excessiva, ante os recursos de
subsistência gerados pelas mais diferentes motivações. Segundo
ele, é a extinção do pequeno produtor que é capaz de explicar
movimentos de colonização e não simples políticas do Estado para
dirigir o processo migratório. Ao relacionarmos essa quinta tese com
a argumentação anterior, perceberemos que as “diferentes
motivações” têm origem no campo econômico e/ou político.
Portanto, extinguir o pequeno produtor e lançá-lo como mão de obra
não autônoma é um processo inerente do capitalismo (inclusão
forçada). Conjuntamente a isso, verificamos na migração dessa mão
de obra (seja dirigida ou voluntária), para áreas denominadas como
fronteiras, uma nova dinâmica desse modelo dominante, a exclusão
(Fontes, 1997).
Na sexta tese, o
autor argumentou que na fronteira deveriam ser criados mecanismos de
controle sobre a mão de obra, ao contrário da ideia de
igualitarismo existente nessas regiões, o que nos leva a crer que,
mais do que a denominação da fronteira, surgiam, concomitantemente,
outras duas características: 1) a área a ser incorporada deveria
reproduzir as mesmas relações de produção da área dominante; 2)
a fronteira, ao ser estabelecida enquanto tal, traz no seu código
genético sua identidade, forjada a partir da visão de mundo de seu
criador.
A sétima tese,
decorrente da sexta, supõe uma reorganização do mundo social da
fronteira sob novas bases, geradas na representação do modelo
dominante e voltadas para ele.
A oitava tese,
amarrando as partes, determinou que não bastaria a reorganização,
mas seria preciso, também, construir os agentes e as atividades que
as ligariam com a totalidade.
A temporalidade
existente nas últimas teses insere a fronteira na dinâmica
capitalista e a ação dessa dinâmica sobre a fronteira, o que não
deve ser deixado de lado. Todavia, as quatro teses nos servem para
pensar a ação sobre a fronteira, isto é, uma área caracterizada
como fronteira.
Da mesma forma
que Oliveira Filho, o grupo de Bertha Becker se destacou nessa
temática, produzindo teses explicativas para a ação do Estado na
fronteira amazônica.
Antônio Cláudio Rabello; Professor do
Departamento de História da Universidade Federal de Rondônia;
doutor em Desenvolvimento Socioambiental pelo Núcleo de Altos
Estudos Amazônicos, da UFPA. @ – antonio.rabello@pq.cnpq.br